domingo, 26 de setembro de 2010

Destinos


Ana Maria considerava-se uma mulher feliz. Que diriam as pessoas que estão sempre a queixar-se de tudo e de todos, por ela se considerar completamente feliz? Mas era-o apesar da luta pela vida. O futuro dos jovens era agora cada vez mais incerto, contratos a termo certo, trabalho precário… apesar de uma licenciatura brilhante e de estar a concluir um doutoramento.
Algumas amigas da mãe, de outra escola da vida, diziam-lhe muitas vezes:
- Tão bonita e culta, bem podias arranjar um marido rico…
Ana Maria sorria e pensava que a sua felicidade não passava por aí. Acreditava na felicidade com letra grande e nas felicidades mais pequenas. Tinha o dom de sonhar, de amar, de admirar e tinha uma alma enorme do tamanho do mundo.
No seu rosto um pouco sardento e de traços quase perfeitos, brilhavam uns olhos negros, enormes, sedentos de vida. Quando se olhava ao espelho não se achava mal de todo, apesar de um narizito um pouco arrebitado que lhe conferia uma certa graça.
Sabia muito bem que nas horas de alegria, uma certa covinha a tornava sedutora.
Morava com a mãe, que fora tão bonita como ela. O pai há muito tempo abandonara a casa para seguir outra mulher. Contudo, nunca lhe faltara nada na vida, graças à coragem e ao trabalho da mãe. Do pai, lembrava-se pouco. Era demasiado pequena quando ele as deixara.
De repente, voltava a ser feliz na salinha acolhedora, junto à mãe, rodeada dos seus preciosos livros. Sentia a casa macia como um ninho.


- Sabes, mãe, a minha amiga Anabela, que está em Belas Artes, disse-me que está a decorar uma galeria… penso que de um senhor estrangeiro que pretende vender quadros de pintores famosos e que anda à procura de alguém com o meu curso para orientar a parte financeira.
Ela ofereceu-se para mo apresentar. Levo o meu currículo e todas as credenciais que possuo. Que achas?
- Sempre soubeste abrir caminhos na vida com sensatez e nunca recusaste uma boa luta.
- Pois… vou já telefonar à Anabela a combinar tudo.
No dia seguinte, vestiu-se elegantemente para impressionar os donos da galeria. Queria conseguir um emprego fixo, bem remunerado, para aliviar um pouco a carga pesada da mãe.
Estava farta do trabalho a prazo certo. Andava sempre com o coração nas mãos.
Anabela já a esperava à porta da galeria…
-Não estejas nervosa, vai tudo correr bem. São dois sócios e um deles tem um filho que também trabalha aqui na galeria. São simpáticos e educados.
Ana Maria retomou nas mãos a sua alma decidida a conquistar o seu futuro.
Anabela fez as apresentações. Ana Maria achou os donos simpáticos. O mais velho, já com alguns fios prateados no seu cabelo negro, tinha um charme indescritível e o outro, no seu português tão atabalhoado, não escondia a sua nacionalidade.
Depois de muitas horas de conversa, Ana Maria foi admitida para administrar financeiramente a empresa.
Quando chegou a casa abraçou-se à mãe, rindo feliz:
- Agora já posso aliviar um pouco todo o teu sacrifício.
- Sabes que nunca foi nenhum sacrifício, és uma filha que merece tudo.
O tempo passou e Ana Maria mostrava o seu valor como boa profissional que sempre fora.
Gostava da presença de Henry, bem cuidado e cheio de charme. Sempre tivera uma inclinação pelos homens mais velhos…
Um dia Henry convidou-a para jantar para falarem mais à vontade sobre a próxima exposição.
A conversa descaiu para o campo pessoal.
- É filha única? Vive com os seus pais?
- Sim, sou filha única e vivo com a minha mãe; o meu pai morreu era eu pequenita.
- Eu também tive uma perda há dois anos… A minha mulher que era inglesa morreu de uma doença incurável. Tenho um filho que já conhece, o Martim.
- Mas ele fala bem o Português…
- Sim, em casa sempre falamos as duas línguas…
Ana Maria sonhava com a sua felicidade, a sua felicidade de mulher que despertara de uma maneira tão estranha… Quando Henry entrava no seu gabinete, o coração batia mais depressa.
Um dia encontrou um ramo de rosas vermelhas em cima da sua mesa de trabalho com um cartãozinho onde se lia: “Para a rosa mais bela do mundo”.
A mãe de Ana Maria quis conhecer o homem que punha uma luz diferente nos olhos da sua filha.
- Convida-o para jantar cá em casa…
- Mãe, não há nada entre nós… pelo menos por enquanto. E ria-se feliz.
Ana Maria convidou Henry a jantar em sua casa. Tal como a mãe, há muito que tinha vontade de o fazer.
Henry chegou à hora combinada com dois grandes ramos de flores. Havia muito mais que cortesia no seu gesto elegante. Olhou Ana Maria com ternura.
Da cozinha, para além dos odores apetitosos de um bom jantar, chegava a voz clara da mãe.
- Já vou…
Ana Maria, entretanto, foi buscar duas jarras com água e quando chegou à sala ouviu duas exclamações ao mesmo tempo:
- Henrique!…
- Helena!…

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Fiquei Comigo


Hoje fiquei comigo. Hoje fiquei com a minha alma e os meus pensamentos. Por vezes, gosto de ficar assim – abrindo e fechando as portas e janelas das minhas certezas ou incertezas, das minhas recordações espalhadas pela estrada que já caminhei. Como se faz no computador: clicando aqui e acolá à procura de coisas. Hoje dir-se-ia a pesquisar… Mas não! O que hoje fiz foi reconstruir um tempo que já passou pela ampulheta. Antigamente, a areia levava o seu tempo a escorrer mas, à medida que os grãozinhos vão sendo menos, ela esgueira-se que nem uma enguia nas mãos do pescador. Por isso, hoje fiquei comigo, relembrando tempos de menina, companheiros e amigos da minha infância e juventude, os velhos lugares dos acontecimentos, a Casa, a Escola, o Colégio, as professoras, as ruas, as praias… E não se pense que é tempo perdido. Quem assim julga, engana-se! Todas a vezes que recuo é para avançar sempre. Nestes passeios que dou comigo faço uma espécie de contabilidade. Levo pois uma pequena balança e vou colocando nos pratos as alegrias e desilusões. É também um modo de me conhecer melhor. Analisar as minhas reacções e capacidades perante ondas diferentes do tempo.


Antigamente não havia os GPS e talvez fosse mais difícil avançar por caminhos desconhecidos e perigosos. Mas constato que isso não é verdade. Talvez fosse da limpidez do firmamento, da vontade de avançar, de descobrir ou da harmonia entre os meus pensamentos e atitudes, não sei… A verdade é que houve um tempo que foi muito mais fácil de percorrer. Vivo então uma espécie de encantamento neste encontro comigo e com a vida. É como se andasse de comboio e saísse numa estação qualquer… ao acaso!


segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Núpcias... Diferentes


Em alguns pontos da China ainda os casamentos se fazem sem que os noivos se conheçam. São os pais que preparam os noivados.
E conta-se esta estranha, embora dita verdadeira, história:
A senhora Tsai, naquela manhã, preparava, em silêncio, o chá para o marido. Este, vendo-a triste e preocupada, perguntou-lhe:
- Também esta noite?
- Também. Já são cinco vezes seguidas em que a vejo em sonhos. Diz-me sempre o mesmo… É formosa… O seu traje de seda cintila ao luar. Fala-me e desaparece.
- Um espírito desassossegado pode trazer grandes males. - Diz-lhe o marido.
Consulta os bonzos. Eles te dirão o que havemos de fazer.
A senhora Tsai, levando varinhas de incenso, dirige-se ao templo budista, onde um monge, pensativo, escuta o seu relato.
- Que devo fazer? Pergunta, por fim, a angustiada mãe.
- Casar a sua filha com o homem que encontre esta noite na ponte que fica perto da sua casa.


Chega a noite. O lugar é solitário. Ouvem-se os passos de um homem. A senhora Tsai vai ao seu encontro e com toda a cortesia pergunta-lhe o nome e lugar de procedência.
- Chamo-me Hi-Ho-Tin, sou lavrador e venho de Szu-Hu.
- Os signos das estrelas indicaram-te para marido da minha filha. Tens de casar com ela.
O desconhecido aceita. Pois não está o nosso destino escrito nas estrelas?
Numa clara manhã – e o que é mais estranho é que esta estranha história se passa no século XX – um automóvel pára à porta dos senhores Tsai. Dele desce o noivo e entra para receber a noiva, que o espera entre as suas damas de honor, ricamente vestida e coberta de jóias.
Com toda a delicadeza, Hi-Ho-Tin aproxima-se dela e realiza-se a cerimónia nupcial segundo o mais rigoroso ritual chinês; segue-se um banquete com mais de trezentos convidados. Trocam-se prendas e é entregue o dote da noiva.
Até aqui, tudo normal. O anormal, o alucinante, é que a esposa é uma boneca de papel, porque a filha dos senhores Tsai morreu quando tinha cinco anos de idade. Mas muitas vezes a mãe a viu em sonhos – errante e triste – pedindo-lhe um esposo, pois a alma de uma mulher solteira não encontra paz no além…
E foi assim que a sorte deu ao senhor Hi-Ho-Tin, um pacífico lavrador, uma boneca de papel por esposa.
Teve de cumprir as tradições e submeter-se à macabra boda, prodigalizando sorrisos e vénias à singular noiva, porque qualquer ofensa ao espírito da morta poderia trazer funestas consequências.
Terminada a festa, o senhor Hi-Ho-Tin despediu-se com respeito dos sogros e levou a esposa de papel, que, em casa, colocou na sala de visitas, em lugar de honra… para não acarretar a vingança dessa sombra etérea e grácil, delicada e triste, que vagueava pelos arrozais á noite, perturbando o sono dos vivos e, agora, desposada, encontrara a paz…

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Sem Nome

Por quem teus olhos brilham
E a tua boca sorri?...
Por quem te alegras agora?
E sem demora,
Por que voltas a sorrir sem razão?
Por quem és, amigo?
Por quem existes?
Quem trazes no coração
Que te permite, com prazer,
Viver?
Respirar neste mundo de problemas,
De sistemas,
De morte,
De dor!...
Quem te deu essa sorte
De ser feliz?
Foi em Deus que encontraste
A alegria de petiz?
Na fortuna?
Diz-me, amigo, sem temor!
Só um aviso, que não vou repetir,
Não me digas que é amor:
Saberei que estás a mentir!


- Nuno Francisco Machado, Porto, 1998

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Vizinha do Princípio da Rua


No primeiro cruzamento antes da nossa casa ficavam duas casas gémeas dentro do estilo colonial, edificadas no século XIX e que tinham umas escadinhas redondas que assentavam mesmo na nossa rua. De um lado morava um médico veterinário muito conceituado na época e do outro, uma velhota, a “viúva do senhor General”, como anunciavam os empregados negros a todos os serviçais da rua… Aliás, eles eram os melhores conhecedores dos patrões e ventilavam todas as novidades.
Mais tarde, as casas foram abaixo para dar lugar a um prédio moderno de andares, onde se instalou a nova Casa Bulha.
Mas voltemos ainda ao tempo da viúva do senhor General. Num terreno pegado com o lado dela haviam imensas amoreiras que a garotada, ao sair da escola, assaltava empanzinando-se de amoras. Bocas vermelhas, mãos e bibes pintalgados de roxos e vermelhos e nos bolsos mais amoras para tormento das nossas mães. Os rapazes gritavam para nos assustarem: “Gostas de amoras? Vou dizer ao teu Pai que já namoras”. Aquela cantilena enfurecia-nos e abandonávamos mais cedo o campo de batalha.
Ao passarmos pela janela da velhota ouvíamos a primeira reprimenda: “ Vejam meninos em que estado vão para casa. Coitadas das vossas mães!” - Nós encolhíamos os ombros e mal lhe ligávamos…
O tempo passou e esquecemo-nos das amoras para nos dedicarmos a outras coisas. Os livros foram sempre a minha grande paixão e eles passeavam de mão em mão, alimentando os nossos sonhos. Havia uma revista mensal sobre cultura que nós devorávamos com ansiedade. Procurávamos avidamente a página assinada por “ Maria Fernanda”.
“ Se eu escrevesse, escreveria exactamente como ela”. Tanta afinidade…
Às vezes, reunidas na minha varanda, pensávamos: “E se lhe escrevêssemos uma carta?”
A sugestão aplaudida por todas nós manteve-se, porém, em projecto.
Quando passávamos pela casa da vizinha do princípio da rua ela estava quase sempre á janela.
Nós riamo-nos (a juventude é, por vezes, irreverente...)
- Deve ter um banquinho para chegar à janela…
- Pensará ela que é a carochinha, à espera do seu João Ratão?
As gargalhadas não paravam…
Por vezes, encontrávamo-la na rua. Tudo nela era velho e ridículo, desde a bolsinha pendurada no braço ao chapéu-de-chuva, seu eterno companheiro em dias de calor ou de chuva. Tinha uma voz esganiçada e rouca, principalmente quando se zangava com o gato, o que acontecia muitas vezes. Gato, aliás, gordo e sedoso que ela amava sem ver correspondido o seu amor. O gato fugia para a nossa casa. E ela, debruçada da sua janela, impaciente, congestionada e instável, chamava sem parar pelo gato. Uma de nós ia levá-lo e ela aproveitava para estabelecer relações, convidando -nos a entrar e fazendo-nos até perguntas que apelidávamos de indiscretas.
A minha mãe desculpava-a: “Coitada, vive só. Nunca se sabe a que tempo se chega…”
Os seus empregados diziam aos nossos que ela passava a vida a espiar-nos e queria saber tudo o que nos acontecia. O facto criou-nos um certo mal-estar. Por isso, ouvíamos com certo alívio a notícia que corria pela rua: falecera a viúva do General!
Para nós, com o desrespeito próprio da juventude, a notícia tinha um certo ar de limpeza.
Mas a minha mãe, submissa a preconceitos, vestiu-se de preto e reservou uma hora para velar o cadáver. Nós retorquíamos: “ Se nunca lhe fizemos companhia em vida, que significado tem irmos lá agora depois de morta?”
A minha mãe foi inabalável perante qualquer argumento. Nós brincávamos: “ Vais ser herdeira do gato?”. Tudo nos servia de gáudio sem vislumbrar que, momentos depois, nos custaria aceitar o desaparecimento da velhota de esquina.
A mãe chegou emocionada:
- E não sabiam vocês quem era ela…
Mas quem poderia ser a velhota do gato, de voz roufenha, dos beijos imundos, da curiosidade doentia?
- Que pena não a ter conhecido melhor. Agora já não tem remédio. A viver tão perto de nós e ao mesmo tempo tão longe. Olhávamo-nos confusas. A minha mãe estaria a falar da mesma pessoa que nós pensávamos…


- Casa tão linda, cheia de livros, piano, recordações de todo o mundo. Viajou muito, era muito inteligente. Teria sido interessante conversar com ela. Pensar que nunca aceitámos os seus convites…
Parecia-nos exagero aquele súbito remorso.
- Seria admissível uma segunda personalidade em figura tão absurda?
- Sim é sempre admissível uma segunda personalidade. E eu já tinha idade para o saber. Não me perdoo a mim própria. “Quem vê caras não vê corações”, é bem certo o ditado.
Pois a viúva do General era nem mais nem menos do que a Maria Fernanda.
-Qual Maria Fernanda? - Perguntámos num grito.
- A Maria Fernanda, a jovem da vossa idade ou com filhas também jovens como diziam… Andamos tão enganados quando nos deitamos a adivinhar pessoas. Maria Fernanda, cujos contos vos apaixonavam e que agora não voltarão mais a ler…
Sufocávamos em lágrimas, agora era tarde para a podermos amar.